Jesus loves you

Ela aproximou-se dele, sorridente. E como quem lhe segredava ao ouvido, disse:
- Jesus ama-te. E deseja conhecer-te.
Ele ficou parado, a digerir mentalmente as palavras dela. Um sorriso aflorou-lhe os lábios, enquanto respondia:
- Calha bem, porque eu sou gay.
Ela pousou-lhe uma piedosa e consoladora mão no ombro.
- Jesus pode ajudar-te.
Ele insistiu:
- Quer dizer que ele também é gay?
- Não – respondeu ela, ofendida. A mão abruptamente retirada do ombro. – Ele é completamente virgem.
- Bom – disse ele, preparando-se para arrepiar caminho, - não o julgo nem condeno por isso. Todos nós temos direito às nossas perversões sexuais.

O dia em que o erotismo foi banido do mundo

Lentamente o erotismo foi sendo expulso do mundo e o seu espaço, outrora quase invisível, foi sendo paulatinamente ocupado pela extrema visibilidade da pornografia. Não me entendam mal. Não escrevo contra a pornografia. Não perderia tempo com tal impossibilidade. A pornografia sempre existiu e provavelmente sempre existirá. Ela é, de alguma forma, congénita ao sexo. O erotismo, não. O erotismo pode morrer, desaparecer. E de certa forma estamos hoje a assistir à sua morte. O abuso do termo erótico, por exemplo, tornou-se recorrente. É verdade que pode não ser fácil saber onde acaba o erotismo e começa a pornografia, que não é fácil, e é provavelmente inútil, tentar traçar uma linha divisória. Mas chamar erótico a produtos que são claramente pornográficos, chamar a um festival de pornografia, festival erótico, usar o termo erótico como sinónimo, mais ou menos rigoroso, de pornografia, não será apenas um abuso, é algo que se compreende mal. Os pornógrafos passaram a ter vergonha da pornografia ao ponto de terem de lhe dar outro nome? Ou é só uma questão de marketing? Afinal a pornografia é hoje, não por acaso certamente, uma das mais rentáveis indústrias do mundo, pelo que o marketing deve ser uma preocupação constante, e enquanto uns vendem a coisa pura e dura, sem eufemismos, outros talvez a prefiram vender como se outra coisa fosse, ou pudesse ser. Ou será que - visão aparentemente optimista, mas na verdade insustentável – o nosso conceito de erotismo se alargou de tal modo que aí passámos a incluir a pornografia? Isto poderia até ser verdade, se a pornografia não fosse na verdade o cemitério do erotismo. Os pornógrafos do passado sabiam isto. Orgulhavam-se disto. O erotismo era uma parvoíce, um requinte cultural, uma mania sensitiva e intelectual de onde a carne, por vezes, parecia ausente. Contra o erotismo a pornografia expunha a radical verdade da carne. Afinal, diziam os pornógrafos, a nossa imaginação sexual não era uma coisa de perfumarias e lojas de flores, mas de talhos e matadouros. Não há aqui nenhuma ironia, nem nenhuma crítica subjacente. A pornografia terá a sua verdade. Não sou um cruzado religioso a lutar contra essa verdade. Serei apenas, se tanto alcanço, um romântico, não daqueles que tentam opor erotismo e pornografia como se um pudesse substituir a outra, como se vender carne numa perfumaria fosse sequer uma ideia interessante, mas dos que tentam resgatar a sua dama das garras do perigoso dragão, o que não significa considerar que um bom dragão seja só e apenas e necessariamente um dragão morto.

A morte do erotismo é também a morte da suspensão. Hoje suspendemos cada vez menos os gestos, as palavras, a forma como tocamos na mais radical das distâncias: um corpo com alma. O tempo em que vivemos faz o elogio do imediato, da sinceridade, da nudez, da ausência de segredos, da verdade pura e crua. Claro que isto não impede que o que esta ideologia mais segregue seja a mentira imediata, como se falar sem pensar fosse uma forma de maior sinceridade do que pensar antes de falar, ou já agora, coisa improvável no seio desta visão do mundo, não separar uma coisa da outra e falar pensado o que se pensa falando. Hoje espera-se que tudo aconteça carregando num botão. É fácil, é barato, dá milhões. Vende-se a prestações fracas imitações das utopias que perdemos, mas que chegam para imobilizar qualquer gesto de resgate que, em qualquer estranho momento, nos tenha passado pela cabeça.

O erotismo era a nossa utopia sexual. A pornografia é só a sua verdade mais radical, tão radical que só pode ser mentira.

Do desejo de ser invejado

Lembro-me de um dia, nas eras infanto-juvenis, um amigo, que tinha mais sucesso do que eu, ao menos pelos seus cálculos, me ter perguntado se eu alguma vez tinha tido inveja dele. Não que eu, ao menos que o tenha notado, lhe tenha dado sinais ou razões que o fizessem pensar que eu o invejava. Aquela pergunta era mais a expressão de um desejo do que a constatação de um facto.

Vem isto a propósito, se propósito há nas coisas, dessa ideia recorrente de que a inveja nos caracterizaria enquanto povo e que viria a ser um dos nossos maiores pecadilhos. É um tipo de inveja bem definido. É essa inveja que supostamente as classes desfavorecidas, como agora se diz, sentiriam das classes (suponho que seja o contrário) favorecidas. Uma inveja, para adequar a coisa ao título deste blog, sentida pelos many e dirigida aos few. Seríamos todos uns invejosos. Bastando para tanto que o outro tenha mais do que nós. Desde a galinha da vizinha que põe mais ovos que a minha até tudo o resto, material ou imaterial, que os outros têm e nós não.

Claro que esta tese da inveja, esta acusação: “Tu é que és o invejoso”, segue normalmente o caminho inverso da inveja, e costuma ser dirigida às classes desfavorecidas pelas classes favorecidas. Nem se compreende muito bem qual é o problema com esta inveja. Das duas, uma. Ou o invejoso quer ter uma galinha que põe mais ovos do que a vizinha, e a isto melhor seria chamar competição, embora essa, ao contrário do que nos ensinam, raramente seja saudável; ou o invejoso mata a galinha da vizinha, se eu não tenho tu também não tens, e, porventura, parece que melhor seria dizer por desgraça, ó terror dos terrores, vota num extremista partido da extremíssima esquerda que defende que ninguém deve ter galinhas que sejam só suas. Claro que até se poderia ver aqui, neste tenebroso processo revolucionário (deixem as galinhas em paz!) uma cura para a inveja. Mas isso não importuna os defensores da tese da inveja. Porque na verdade, e vem agora finalmente o propósito da inicial memória infanto-juvenil, o que os move, embora, concedamos, a um nível inconsciente, como dizia o outro, não é talvez tanto o desconforto de ser invejado (visses tu os olhos que o vizinho deitou à minha galinha! Santo Deus, as pessoas nunca estão satisfeitas.) quanto o desejo de ser invejado. Não seria tanto o vizinho, insistindo no nosso prosaico exemplo, a invejar a galinha da vizinha, quanto a vizinha a passear todos os dias a sua galinha debaixo dos olhos do vizinho, a pôr os ovos ao sol para que o vizinho os veja e contar a todos e a cada um, sabendo que aos ouvidos do vizinho chegará, os magníficos ovos que põe a sua galinha, que igual a ela nem outra há ou pode haver.

Não seria mau que Nosso Senhor Jesus Cristo pedisse licença ao seu legítimo Pai, Rei do Universo e Arredores, para descer a esse quase nada que somos nós e nos ajudasse a inverter este pressuposto moral. Diria o Nazareno, que também nós temos uma Nazaré onde ele poderia voltar a nascer, qualquer coisa como: “Ouviste o que foi digo aos antigos: a inveja é pecado. Eu porém vos digo: maior pecado é desejar ser invejado.” E haveria também, a boa alma, de distribuir uns certos e determinados espelhos, para que cada um e cada uma tivesse um daqueles em casa, já não para contemplar a vã beleza, mas para ser um pouco menos arrogante ao analisar isso a que chamamos a realidade e que talvez mais não seja, também ela, do que um enorme espelho de uma outra natureza.

Sumol


Em criança devo ter bebido litros de Sumol. A minha mãe comprava carradas lá para casa. Substituía a água às refeições. Mas só para os petizes. Os adultos não se davam a essas infantilidades. O Sumol acabou por ficar, na minha cabeça, ligado à infância. Era uma bebida de crianças. Com a idade acabava por ser abandonada. Por isso faz-me sempre impressão quando vejo adultos a beber Sumol. Aquilo não bate certo. Há ali alguma coisa que está mal. Tirem o Sumol e ponham no seu lugar outra bebida qualquer e a impressão desaparece. Ou então transformem o adulto em criança e deixem ficar o Sumol que a impressão volta a desaparecer. Mas idade adulta e Sumol é que não faz mesmo sentido nenhum.

É por isso que compreendo muito bem um recente anúncio da Sumol onde se diziam coisas como “Um dia vais achar que sair à noite é ir pôr o lixo ao contentor. Quando esse dia chegar não lhe fales.”, “Um dia vais achar que tens de ir onde toda a gente vai. Quando esse dia chegar não lhe fales.”, “Um dia vais achar que tens que usar fato e gravata como toda a gente. Quando esse dia chegar não lhe fales.”, e por aí fora. Tudo isto, no fundo, poderia ser resumido numa única ideia: Um dia vais crescer, mas quando esse dia chegar não cresças, continua a beber Sumol. Faz todo o sentido. Para mim faz. E fico contente pelo próprio Sumol concordar comigo. Crescer diminui o consumo de Sumol. Por isso mantém-te sempre criança e bebe o belo do Sumol. Quando a maturidade quiser mesmo vir e obrigar-te a fazer coisas tão chocantes e inaceitáveis como usar fato e gravata, ir onde os outros vão ou vazar o lixo à noite, quando esse fatídico dia (fatídico ao menos para o Sumol) chegar, não lhe fales. Continua a beber Sumol.