Do desejo de ser invejado

Lembro-me de um dia, nas eras infanto-juvenis, um amigo, que tinha mais sucesso do que eu, ao menos pelos seus cálculos, me ter perguntado se eu alguma vez tinha tido inveja dele. Não que eu, ao menos que o tenha notado, lhe tenha dado sinais ou razões que o fizessem pensar que eu o invejava. Aquela pergunta era mais a expressão de um desejo do que a constatação de um facto.

Vem isto a propósito, se propósito há nas coisas, dessa ideia recorrente de que a inveja nos caracterizaria enquanto povo e que viria a ser um dos nossos maiores pecadilhos. É um tipo de inveja bem definido. É essa inveja que supostamente as classes desfavorecidas, como agora se diz, sentiriam das classes (suponho que seja o contrário) favorecidas. Uma inveja, para adequar a coisa ao título deste blog, sentida pelos many e dirigida aos few. Seríamos todos uns invejosos. Bastando para tanto que o outro tenha mais do que nós. Desde a galinha da vizinha que põe mais ovos que a minha até tudo o resto, material ou imaterial, que os outros têm e nós não.

Claro que esta tese da inveja, esta acusação: “Tu é que és o invejoso”, segue normalmente o caminho inverso da inveja, e costuma ser dirigida às classes desfavorecidas pelas classes favorecidas. Nem se compreende muito bem qual é o problema com esta inveja. Das duas, uma. Ou o invejoso quer ter uma galinha que põe mais ovos do que a vizinha, e a isto melhor seria chamar competição, embora essa, ao contrário do que nos ensinam, raramente seja saudável; ou o invejoso mata a galinha da vizinha, se eu não tenho tu também não tens, e, porventura, parece que melhor seria dizer por desgraça, ó terror dos terrores, vota num extremista partido da extremíssima esquerda que defende que ninguém deve ter galinhas que sejam só suas. Claro que até se poderia ver aqui, neste tenebroso processo revolucionário (deixem as galinhas em paz!) uma cura para a inveja. Mas isso não importuna os defensores da tese da inveja. Porque na verdade, e vem agora finalmente o propósito da inicial memória infanto-juvenil, o que os move, embora, concedamos, a um nível inconsciente, como dizia o outro, não é talvez tanto o desconforto de ser invejado (visses tu os olhos que o vizinho deitou à minha galinha! Santo Deus, as pessoas nunca estão satisfeitas.) quanto o desejo de ser invejado. Não seria tanto o vizinho, insistindo no nosso prosaico exemplo, a invejar a galinha da vizinha, quanto a vizinha a passear todos os dias a sua galinha debaixo dos olhos do vizinho, a pôr os ovos ao sol para que o vizinho os veja e contar a todos e a cada um, sabendo que aos ouvidos do vizinho chegará, os magníficos ovos que põe a sua galinha, que igual a ela nem outra há ou pode haver.

Não seria mau que Nosso Senhor Jesus Cristo pedisse licença ao seu legítimo Pai, Rei do Universo e Arredores, para descer a esse quase nada que somos nós e nos ajudasse a inverter este pressuposto moral. Diria o Nazareno, que também nós temos uma Nazaré onde ele poderia voltar a nascer, qualquer coisa como: “Ouviste o que foi digo aos antigos: a inveja é pecado. Eu porém vos digo: maior pecado é desejar ser invejado.” E haveria também, a boa alma, de distribuir uns certos e determinados espelhos, para que cada um e cada uma tivesse um daqueles em casa, já não para contemplar a vã beleza, mas para ser um pouco menos arrogante ao analisar isso a que chamamos a realidade e que talvez mais não seja, também ela, do que um enorme espelho de uma outra natureza.

2 comentários:

  1. Cheers, jctp :)
    Mas o desejo de ser invejado não entronca na soberba, esse pecado?

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  2. Que saudades jctp, de te ler.
    Ana Simões

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